A Evolução Digital e a Precarização do Trabalho

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16/04/2024 às 11:24
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Autora: Débora Lôpo Farrapo 1

Resumo: O artigo tem por objetivo, analisar os princípios de normas Internacionais, considerando sua aplicabilidade, para a proteção dos entregadores das plataformas digitais. Diante da evolução tecnológica, o Direito do Trabalho tem um desafio jurídico, a aplicação de normas internacionais nos trabalhos exercidos por aplicativos. O artigo apresenta-se em quatro partes. A primeira, versa sobre os princípios da Organização Internacional do Trabalho e sua aplicabilidade. Na segunda seção estende-se sobre a diferença entre empregado e autônomo. Na sequência a evolução tecnológica e a precarização do trabalho. Para finalizar as disposições da OIT sobre as plataformas digitais e as relações de trabalho.

Palavras-Chaves: Tecnologia. Organização Internacional do Trabalho. Precarização do Trabalho.

Abstract

The article aims to analyze the principles of International standards, considering their applicability, for the protection of delivery people of digital platforms. Faced with technological evolution, Labor Law has a legal challenge, the application of international standards in the work performed by applications. The article is presented in four parts. The first deals with the principles of the Intentional Organization of Work and its applicability. The second section expands on the difference between employed and self-employed. Following the technological evolution and the precariousness of work. To finalize the ILO provisions on digital platforms and labor relations.

Keywords: Technology. International Labor Organization. Precariousness of Work.

Introdução

As novas tecnologias trouxeram diversos benefícios para a humanidade, com essa evolução constante as formas de trabalhos foram modificando-se. De modo que a evolução traz inclusão, e diversas formas de se obter uma renda. A ascensão tecnológica transcende questões puramente de inovação, na seara trabalhista pode-se destacar a autonomia como uma modalidade crescente na atualidade. A falta de empregador, a sensação de liberdade financeira, culminado com o empreendedorismo, traz a sensação de evolução trabalhista.

Pode-se até considerar um paraíso para quem busca trabalhar por “conta própria” e não está subordinado a nenhuma empresa. São diversas plataformas digitais que trazem no seu bojo essa ideologia de dinamismo laboral. Falta de subordinação e de um teto salarial, sendo o parceiro, o único que pode determinar quanto lucro irá ter.

Entretanto, essa harmonia criada pela disponibilização de aplicativos especializados possui uma problemática relativa aos entregadores dos aplicativos, que ficam à margem da nossa jurisprudência. Que não conseguiu de forma hábil acompanhar a evolução do mercado de trabalho, gerando um desequilíbrio no âmbito trabalhista. No ramo de entregas, particularmente de alimentos, que teve um aumento significativo advindo da pandemia, tem profissionais autônomos que trabalham nessa dinâmica.

A Organização Internacional do Trabalho, em suas normativas dispõe sobre princípios básicos, fundamentais para uma relação de trabalho equilibrada, que são: igualdade e à não discriminação, saúde e segurança do trabalho, liberdade sindical e normas internacionais relativas ao regime de emprego socialmente protegido. Todos esses princípios deveriam ser aplicados também às novas modalidades de trabalho, como aos trabalhadores autônomos que prestam serviços para as plataformas digitais. Entre as empresas nacionais mais conhecidas, pode-se citar: iFood, Loggi, James Delivery, Zé Delivery e 99 Foods. As de capital estrangeiro: Rappi e da Uber Eats.2

Este artigo visa fazer uma análise sobre a precarização do trabalho diante das ferramentas digitais sob a ótica da Organização Internacional do Trabalho OIT. Primeiro analisando os princípios fundamentais do trabalho, na sequência a diferença entre empregado e trabalhador autônomo, conforme a CLT. Um breve contexto sobre evolução digital e a precarização do trabalho e na última seção o relatório da OIT com suas recomendações.

Princípios Norteados pela Organização Internacional do Trabalho OIT

Considerando o crescimento econômico ao longo das décadas e as mudanças sociais advindas da globalização, evidenciam a necessidade de buscar a equidade nos vínculos trabalhistas. Sendo o objetivo do direito do trabalho regular as relações trabalhistas, visando regulamentar as normas. Norteando princípios na tentativa de equiparar a relação entre o empregado e o empregador, e os demais contratos de prestação de serviços.

A Declaração da OIT sobre Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho, de 1944, tem como convicção que a justiça social é determinante para uma sociedade equilibrada e justa. Portanto, são necessárias inclusões de garantias fundamentais para o trabalho de forma eficiente, promovendo políticas capazes de gerar empregos.

Ademais, é competência da OIT estabelecer normas Internacionais do Trabalho a fim de “manter o vínculo entre o progresso social e o crescimento econômico.”3 Promovendo a garantia dos princípios e garantias fundamentais. É obrigação do Brasil como membro fundador da OIT, “mesmo que não tenha ratificado as convenções, deve respeitar, promover e tornar realidade, de boa fé e de conformidade com a constituição, os princípios relativos aos direitos fundamentais.” 4

Os princípios é onde se inicia o direito, é a base, a causa, um ponto de partida para regulamentar normas, 5 possuindo funções normativas e interpretativas. A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) autoriza que os princípios sejam usados pela Justiça do trabalho na falta de disposições legais:

As autoridades administrativas e a Justiça do Trabalho, na falta de disposições legais ou contratuais, decidirão, conforme o caso, pela jurisprudência, por analogia, por equidade e outros princípios e normas gerais de direito, principalmente do direito do trabalho, e, ainda, de acordo com os usos e costumes, o direito comparado, mas sempre de maneira que nenhum interesse de classe ou particular prevaleça sobre o interesse público.6

Consonante as normas do direito internacional do trabalho, conforme o entendimento Superior Tribunal Federal, os tratados e convenções internacionais, podem ter status de norma Supralegal ou Constitucional a depender do quórum de votação e do período da retificação. Tratados de direitos humanos anteriores à EC 45/04, possuem status de norma supralegal e infraconstitucional. Já os tratados posteriores à EC 45/04, aprovada por três quintos em dois turnos nas duas casas do Congresso Nacional, possuem status de norma constitucional. Os tratados aprovados após a EC 45/04 sem a observância do quórum especial, recebem o status de norma supralegal e infraconstitucional.

O Brasil ratificou normas internacionais referente à igualdade e a não discriminação, à saúde e segurança do trabalho, à liberdade sindical, e normas referentes ao regime de emprego socialmente protegido. No total, foram 82 convenções ratificadas, de acordo com a OIT.7

A Constituição da OIT, é fundada em princípios, a conferência que constitui as normas fundamentais dos trabalhos, teve como fonte basilar à igualdade e não discriminação, visando melhores condições de trabalho, em prol do bem comum. Estabelecendo que o trabalho não pode ser caracterizado como uma mercadoria, e que todos são iguais. Devendo ter condições de labor dignas para a manutenção da paz e o bem-estar social. Os artigos estão alinhados, como os princípios básicos para uma relação de trabalho socialmente saudável, veja:

I- A Conferência reafirma os princípios fundamentais sobre os quais repousa a Organização, principalmente os seguintes:

  1. o trabalho não é uma mercadoria;

II A Conferência, convencida de ter a experiência plenamente demonstrado a verdade da declaração contida na Constituição da Organização Internacional do Trabalho, que a paz, para ser duradoura, deve assentar sobre a justiça social, afirma que:

a) todos os seres humanos de qualquer raça, crença ou sexo, têm o direito de assegurar o bem-estar material e o desenvolvimento espiritual dentro da liberdade e da dignidade, da tranquilidade econômica e com as mesmas possibilidades;

b) a realização de condições que permitam o exercício de tal direito deve constituir o principal objetivo de qualquer política nacional ou internacional;

III A Conferência proclama solenemente que a Organização Internacional do Trabalho tem a obrigação de auxiliar as Nações do Mundo na execução de programas que visem:

a) proporcionar emprego integral para todos e elevar os níveis de vida;

d) adotar normas referentes aos salários e às remunerações, ao horário e às outras condições de trabalho, a fim de permitir que todos usufruam do progresso e, também, que todos os assalariados, que ainda não o tenham, percebam, no mínimo, um salário vital;

e) assegurar o direito de ajustes coletivos, incentivar a cooperação entre empregadores e trabalhadores para melhoria contínua da organização da produção e a colaboração de uns e outros na elaboração e na aplicação da política social e econômica;

f) ampliar as medidas de segurança social, a fim de assegurar tanto uma renda mínima e essencial a todos a quem tal proteção é necessária, como assistência médica completa;

g) assegurar uma proteção adequada da vida e da saúde dos trabalhadores em todas as ocupações;

i) obter um nível adequado de alimentação, de alojamento, de recreação e de cultura; 8

.

A Constituição adotada em 1919, pela OIT, foi emendada em 1922, 1934 e 1945. Sendo substituída pela Constituição aprovada na 29ª reunião da Conferência Internacional do Trabalho e Montreal em 1946, com anexo a conferência da Filadélfia de 1944. Sua vigência iniciou-se em 20 de abril de 1948. O Brasil ratificou em 13 de abril de 1948, consoante ao Decreto de Promulgação n.º 25.696 de 20 de outubro do mesmo ano. Sendo revogado pelo decreto n.º 10.088 de 2019.

A Convenção 155 de 1981, estabeleceu princípios relacionados à saúde e segurança do trabalho, destacando a importância da colaboração entre o Governo, empregados e empregadores. Esses esforços para criar uma norma nacional sobre a temática, a fim de cumprir a determinação da OIT, que as normas devem ser coerentes, precisam ser colocadas em prática, e se necessário serem sempre reanalisadas, para adequação social. A convenção foi aprovada pelo Decreto Legislativo n. 2, de 1992, e promulgada pelo Decreto n. 1.254, de 1994.

Art. 4 — 1. Todo Membro deverá, em consulta com as organizações mais representativas de empregadores e de trabalhadores, e levando em conta as condições e as práticas nacionais, formular, pôr em prática e reexaminar periodicamente uma política nacional coerente em matéria de segurança e saúde dos trabalhadores e o meio-ambiente de trabalho.9

A Convenção 98 de 1949, versa sobre a liberdade sindical, determina que os países signatários devem tomar medidas relacionadas às negociações entre empregado e empregador. Foi aprovada na 32ª reunião da Conferência Internacional do Trabalho de Genebra, entrou em vigor no plano internacional em 18.7.51. Já no Brasil foi aprovada pelo Decreto Legislativo n.º 49, de 27 de agosto de 1952, do Congresso Nacional. Ratificada em 18 de novembro de 1952, entrando em vigência nacional no dia 18 de novembro de 1953.

Art. 1 — 1. Os trabalhadores deverão gozar de proteção adequada contra quaisquer atos atentatórios à liberdade sindical em matéria de emprego.

Art. 4 — Deverão ser tomadas, se necessário for, medidas apropriadas às condições nacionais, para fomentar e promover o pleno desenvolvimento e utilização dos meios de negociação voluntária entre empregadores ou organizações de empregadores e organizações de trabalhadores com o objetivo de regular, por meio de convenções, os termos e condições de emprego.10

A Declaração da OIT Sobre os Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho de 1998, destacou que para “assegurar a equidade, o progresso social e a erradicação da pobreza, é necessário que a OIT promova políticas sociais sólidas, a justiça e instituições democráticas.”11 Estabelecendo princípios relativos aos direitos fundamentais para serem ratificados pelos países signatários. As normas internacionais relativas aos regimes de emprego socialmente protegido previstos na declaração de 1998:

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a) a liberdade sindical e o reconhecimento efetivo do direito de negociação coletiva;

b) a eliminação de todas as formas de trabalho forçado ou obrigatório;

c) a abolição efetiva do trabalho infantil; e

d) a eliminação da discriminação em matéria de emprego e ocupação.12

Os princípios fundamentais internacionais buscam a equidade social, por conseguinte, a implementação dessas normas é importante para o equilíbrio financeiro e social de uma nação. Para a manutenção da paz é necessário ter uma sociedade que visa a justiça econômica. Que implementa os princípios fundamentais para proteger os hipossuficientes, diminuindo a desigualdade social do país.

A relação de trabalho entre os entregadores e os aplicativos de entrega

A CLT em seu artigo 3º denomina que “empregado é toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário.”13 Sendo preciso para compor o vínculo de empregado e empregador a onerosidade, pessoalidade, subordinação, habitualidade e a prestação de serviço a ser prestado por pessoa física. “O empregado é uma espécie do gênero trabalhador.” 14 Portanto, "a relação de emprego, do ponto de vista técnico-jurídico, é apenas uma das modalidades específicas de relação de trabalho juridicamente configuradas.”15 Não podendo ser confundida com as outras modalidades das relações de trabalho, como o autônomo.

Já o trabalhador autônomo não é disciplinado pela CLT, pois essa modalidade não possui pessoalidade e subordinação durante a prestação de serviço. “Assume o autônomo os riscos de sua atividade, enquanto os riscos da atividade no contrato de trabalho ficam a cargo do empregador, como se verifica no art. 2º da CLT, que não podem ser transferidos ao empregado.”16

Diante dessa breve distinção, pode-se verificar as diferenças impostas diante dessas modalidades, que modificam a vida do trabalhador. Como supracitado, o sistema jurídico brasileiro implementou normas para garantir que o empregado em uma relação contratual tenha seus direitos resguardados, como: décimo terceiro salário, férias remuneradas e o Fundo de garantia por tempo de Serviço (FGTS). Sendo um desafio para o trabalhador autônomo, pois esse não possui os direitos destinados aos empregados.

O entregador das empresas de aplicativo como: Ifood, Rappi, Uber eats, Loggi, 99food, dentre outros, possui uma relação de “parceria” com as plataformas, não havendo uma decisão contundente sobre o tema. Vale ressaltar que os princípios e a doutrina buscam um entendimento sobre essa modalidade, se os entregadores se enquadram na relação de emprego ou trabalho.

Para caracterização de relação de emprego são necessários ter a onerosidade, pessoalidade, subordinação, habitualidade e a prestação de serviço ser prestado por pessoa física. A onerosidade é constituída a partir do pagamento da prestação de serviço, a relação empregatícia é uma relação de fundo econômico.17 O art. 459 da CLT, não determina que o salário deve ser pago em parcela única, apenas diz que não deve ultrapassar um mês. Portanto, pode ser pago por dia, semana, quinzena ou mês.

A prestação de serviço deve ser feita de forma pessoal, o contrato de trabalho específica a pessoa que deve prestar serviço, o obreiro não pode delegar essa função para outrem, constituindo o intuit personae, configurando a dependência destacada no art. 2º da CLT.18

Na subornação, “o empregado exerce suas atividades com dependência do empregador. Ele exerce, então, um trabalho subordinado juridicamente.”19 Ficando o empregado obrigado a cumprir as normas estipuladas, sendo submisso ao poder de direção do empregador. Não podendo a subordinação jurídica ser confundida com conselhos ou orientações. 20

Já na habitualidade, o “serviço de natureza não eventual caracteriza-se quando o tipo de trabalho desenvolvido pelo obreiro, em relação a seu tomador, é de necessidade permanente para o empreendimento.”21 A função deve ser exercida por pessoa física, ou seja, não pode ser jurídica.

Há controvérsias em relação à autonomia do entregador de aplicativo que serão debatidas nas próximas seções.

A evolução digital versus a precarização do trabalho

O avanço tecnológico vem modificando a vida dos brasileiros, alterando a forma de convivência social, lazer e trabalho. Trazendo comodidade, dinamismo e agilidade na comunicação, sendo possível a interação entre duas pessoas em países distintos, ou grupos, por meio da internet. Isso há algumas décadas seria praticamente impossível.

Diante da dinamicidade das transformações provocadas pelo impacto da tecnologia ainda não é possível estabelecer a amplitude, profundidade e a velocidade com que irão ocorrer o que demanda, no tocante a Ciência do Direito, especial atenção aos direitos e garantias fundamentais.22

A Lei nº 13.352, veio disciplinando o contrato de parceria entre profissionais da beleza, no qual estabelece que o salão ofereça toda infraestrutura. E os parceiros apenas prestam os seus serviços de acordo com sua qualificação, não precisando reconhecer o vínculo desses prestadores de serviços. Essa lei recebeu críticas, pois os profissionais trabalham de terça a domingo, mais de 8h por dia, e não possuem vínculo com o salão. Abrindo precedentes para outras modalidades de parcerias:

O estabelecimento torna-se responsável por prover a infraestrutura necessária – os demais trabalhadores seguem sendo reconhecidos como funcionários – para que suas “parceiras” e “parceiros”, agora legalmente autônomos, realizem seu trabalho. Assim, aquela manicure que trabalha oito horas por dia ou mais, seis vezes por semana, para o mesmo salão, poderá ser uma prestadora de serviços.23

A uberização do trabalho é crescente no Brasil, esse modelo de parceria “consolida a passagem do estatuto de trabalhador para o de um nanoempresário-de-si permanentemente disponível ao trabalho; retira-lhe garantias mínimas ao mesmo tempo que mantém sua subordinação.” 24 transferindo-lhes todos os riscos e custos para o prestador de serviço, no qual não possuem direitos trabalhistas, ficando desprotegidos, com consentimento jurídico.

Sob o comando do capital financeiro e das corporações globais, estaríamos adentrando na era da “autonomia”, da ausência de “patrão”. Nela, uma miríade de prestadores de “serviços”, “empreendedores”, se converteriam nos novos beneficiários, em “proprietários dos meios de produção”. 25

.

A quarta revolução industrial, traz novas formas de trabalho, que fogem do modelo tradicional no qual foi redigida a CLT em 1943, e pouco abrangida pela Reforma Trabalhista em 2017. “A economia digital hoje é o novo campo da flexibilização do trabalho, enquanto um campo virtual que conecta a atividade de consumidores, trabalhadores e empresas, sob formas menos reconhecíveis e localizáveis.”26 E com o crescimento de novos adeptos ao mercado digital, tornou- se algo extremamente lucrativo.

No contexto da quarta revolução industrial novos problemas sociais oriundos do uso da inteligência artificial (IA) ou mau uso das tecnologias da informação e comunicação (TICs), acarretam a necessidade de reinterpretar a proteção dos direitos fundamentais à luz das novas demandas. 27

De acordo com o levantamento feito pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em 2021 o Brasil possuía mais de 4,4 milhões de trabalhadores do setor de transporte e 1,4 milhões são entregadores e motoristas de aplicativos. Sendo que esse número em 2016 era de 840 mil.28

Diante da pandemia, e da necessidade de aplicação de medidas para conter a Covid-19, as empresas no ramo de alimentos tiveram que se adaptar, aderiram aos aplicativos de entrega de forma maçante, para trazer o contato com o cliente. Diversas plataformas ganharam forças nesse período, tais como: Ifood, Rappi, Uber eats, Loggi, 99food, são as mais utilizadas. Em 2017 a plataforma do Ifood, já possuía mais 6.1 mm de pedidos por mês, em 2020 esses dados triplicaram a plataforma fez em média mais de 20 mm de entregas, possuindo no ano de 2021 mais de 160 mil entregadores ativos.29

Portanto, “ao debater a Economia de Plataformas Digitais, é importante considerar as diferentes tecnologias e como elas modificaram as relações de trabalho e o cotidiano de maneira crítica, pontuando os interesses envolvidos em seu desenvolvimento, seu uso e sua posse.”30 A pesquisa sobre Condições de Trabalho, Direitos e Diálogo Social para Trabalhadoras e Trabalhadores do Setor de Entrega por Aplicativo em Brasília e Recife realizada pela CUT por meio de projeto de cooperação e parceria da CUT e Organização Internacional do Trabalho, trouxe dados que ajudam a contextualizar a dinâmica dos trabalhadores que fazem entrega utilizando as plataformas digitais.

A pesquisa demonstrou as dificuldades enfrentadas pelos entregadores dos aplicativos, além de não possuírem qualquer vínculo empregatício, sofrem preconceitos, não possuem qualquer segurança no trabalho, precisam arcar com os custos da atividade, acabam trabalhando mais 8h por dia, e alguns não recebem um salário-mínimo mensal.

A média total da jornada de trabalho semanal dos entregadores de aplicativos da amostra foi de 66h. E a renda média é de R$ 1.237,50, sem tirar os custos para manutenção do trabalho, como: gasolina, alimentação, internet e manutenção do equipamento. Fazendo a retirada dos custos muitos entregadores ficam com salário abaixo do mínimo estabelecido pela nossa Carta Magna. 31 Para receber acima da média o entregador precisa, mostrar a plataforma que está disponível o maior tempo possível, veja como funciona a dinâmica:

Há dois elementos fundamentais para compreender a gestão do trabalho pelas plataformas digitais: a gamificação e a gestão flexível por meio do algoritmo. Os relatos dos trabalhadores permitem afirmar que por meio dessa gestão flexível, diferenciada e gamificada, os aplicativos se utilizam da concorrência entre os próprios entregadores (na busca por mais entregas) para obter mais engajamento deles no trabalho e, portanto, maior tempo de conexão no aplicativo, o que resulta em maior tempo de trabalho não pago.32

Além das horas de trabalho exaustivas e remuneração baixa, os entregadores convivem com a insegurança da profissão. Em relação aos EPIs, 74% dos entrevistados disseram que nunca os forneceram, e 26% consideraram que elas fornecem apenas alguns, sendo esses referentes a Covid-19.33 Sobre os riscos no trabalho, 55% dos entregadores disseram que não receberam nenhuma orientação sobre prevenção de acidentes, 37% receberam, mas julgam ineficazes e 8% consideram satisfatório. 34

Quando ocorre um acidente de trabalho ou ficam doentes, os entregadores não possuem apoio, mas, podem sofrer sanções dentro das plataformas, por não terem entregado os pedidos. “Em muitos casos, os entregadores acidentados foram punidos com bloqueios nos aplicativos por não terem finalizado a entrega.”35

Além desses dissabores da profissão, os entregadores sofrem discriminações diárias nos exercícios de suas funções, 81% dos entrevistados, sofreram algum tipo de discriminação, ou ofensas quando estavam trabalhando. “Nos casos em que o entregador sofreu discriminação ou ofensa, 77% não comunicaram os aplicativos. Entre aqueles que comunicaram a empresa, nenhum entrevistado relatou saber se ela tomou alguma providência.”36

Diante desses dados é flagrante a necessidade de mudanças reais, para a proteção desses trabalhadores, que não possuem amparo jurídico ou são insuficientes para a efetiva proteção.

Disposições da Organização Internacional do Trabalho OIT

Com o avanço tecnológico, surgem novas modalidades de emprego. A OIT em 2021 fez um relatório sobre a evolução do trabalho no mundo virtual sobre intitulado World Employment and Social Outlook 2021: O papel das plataformas digitais de trabalho na transformação do mundo do trabalho. Na pesquisa foram entrevistados 12.000 trabalhadores e representantes de 85 empresas em todo o mundo em vários setores.

No relatório pode-se apurar que o mercado digital trouxe mais oportunidades de empregos, inclusive para mulheres, deficientes e pessoas marginalizadas pela sociedade. Entretanto, ficou evidente a má remuneração dos trabalhadores e a falta de normas jurídicas para o enquadramento dos profissionais, que assumem o papel de autônomos.

Metade dos trabalhadores das plataformas ganham menos de 2 dólares a hora e há uma diferença de ganhos financeiros entre as plataformas. “Os custos e benefícios das plataformas digitais não são distribuídos uniformemente no mundo. Na realidade, 96% dos investimentos nessas plataformas ocorrem na Ásia, América do Norte e Europa; 70% das receitas estão concentradas em apenas dois países, Estados Unidos e China.”37 A forma de trabalho das plataformas digitais é das empresas dos Estados do norte que terceirizam os trabalhos exercidos pelos países do sul, causando desigualdade de renda, entre as regiões.

A OIT contestou a necessidade de implementação de medidas jurídicas para minimizar essa disparidade entre os trabalhadores das empresas. O relatório clama pelo diálogo social e destaca paramentos para os Estados conseguirem administrar essas novas relações contratuais:

A correta classificação da situação laboral dos(as) trabalhadores(as), de acordo com os sistemas de classificação dos países;

Transparência e reconhecimento da responsabilidade dos algoritmos tanto para trabalhadores, quanto para empresas;

A possibilidade de os(as) trabalhadores(as) autônomos (as) que exercem a sua atividade em plataforma tenham direito à negociação coletiva;

A possibilidade de todos(as) os(as) trabalhadores(as), incluindo os trabalhadores(as) de plataforma, tenham acesso a benefícios de seguridade social adequados, por meio da extensão e adaptação de políticas e marcos legais quando necessário;

A possibilidade de os(as) trabalhadores(as) de plataforma terem acesso, se o desejarem, aos tribunais da jurisdição em que se encontram.38

Os Auditores Fiscais do Trabalho acompanharam de abril a dezembro de 2020, mais de 100 entregadores da Rapp em São Paulo e concluíram que os entregadores possuem relação de emprego, por diversos fatores. “Na prática, os motociclistas e ciclistas que trabalham para o aplicativo não tem autonomia, não definem o valor do serviço, se sujeitam a um contrato com regras unilaterais e podem ser punidos/suspensos quando a Rappi entender que as regras não foram cumpridas.”39

A fiscalização constatou que a maioria dos entregadores são jovens, de baixa renda e sem perspectiva de emprego. Os entregadores não são autônomos, pois ficam sob a subordinação da plataforma, não é o trabalhador que determina o valor da entrega, e o consumidor não contrata o entregador e sim a Rappi. Portanto, a plataforma precisa dos entregadores para manter o seu negócio.

Os entregadores não possuem autonomia nem para recusar a entrega, pois se recusarem são punidos pela plataforma. Eles não recebem diariamente, podendo receber por semana se pagarem uma taxa. Para receber sem custos o pagamento tem que ser feito por mês.

Os fiscais comprovaram que essa modalidade é fraudulenta, prejudica outras empresas que fazem a contratação correta dos entregadores:

A fraude praticada desestrutura todo o setor econômico de entregas. “A Rappi estabelece uma concorrência desleal com as empresas de entregas que têm os motociclistas empregados, pagando os direitos trabalhistas. É o dumping social. A Rappi tem custo praticamente zero com a mão de obra ‘autônoma’ e as outras têm custos, não conseguem competir. As empresas e os trabalhadores ficam prejudicados”.40

As críticas sobre essa modalidade uberizada de prestação de serviço, gira em torno da falta de cuidado do Estado com os mais pobres, propiciando a exploração em massa de pessoas. “Gestou-se, então, um “novo” modo de exploração do trabalho que adultera a concretude das relações contratuais vigentes, intensificando ainda mais a precarização.”41

Conclusão

A plataformas digitais de fato tem a positividade de conseguir de forma rápida a conexão de quem precisa de um serviço, com quem presta o serviço. Com isso aumenta as chances de trabalho para muitos brasileiros. Entretanto, a falta de norma específica traz a informalidade, flexibilidade e precariedade do trabalho.

A OIT em seu preâmbulo da Constituição enfatiza que "considerando que a paz para ser universal e duradoura deve assentar sobre a justiça social,” o trabalho que implica para muitos indivíduos privações e miséria, põe em perigo a paz e a harmonia.42 Portanto, o bem-estar social depende do trabalho exercido. O trabalho não é uma mercadoria,43 para que o trabalhador fique no limbo jurídico sem expectativa coletiva de melhoria de trabalho. A hipossuficiência do obreiro, faz com que ele aceite trabalho explorador apenas para ter uma renda.

É dever do Estado através da justiça equiparar essa balança. Trabalhos com horários exaustivos, baixos salários, falta de proteção jurídica, acalenta o empobrecimento da população, distanciando-os da dignidade social. O limbo jurídico só beneficia alguns, causando um flagelo social econômico difícil de ser restituído.

Logo, as mudanças na seara trabalhista fazem parte da evolução tecnológica, que não tem como evitar, a única alternativa é de entender e adaptar-se a elas, com diálogo e coerência para legislar em favor do bem comum. É necessário que o Estado tenha coragem para aceitar que essa modalidade possui todos os requisitos para ser enquadrada como relação de emprego, e essa subordinação as plataformas estarão mais presentes em outras categorias de emprego. Não podendo o Legislativo se omitir, diante do flagelo das normas fundamentais básicas dos Direitos Internacionais do Trabalho.

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Sobre a autora
Débora Lôpo Farrapo

Sou Advogada, apaixonada pelo direito. Formação Acadêmica Pós-graduação em Processo de Trabalho e Previdenciário- UniCeub Bacharel em Direito (2019) - Faculdade Anhanguera de Brasília-FAB Bacharel em Comunicação Social Jornalismo (2013)- Faculdade Anhanguera-FAB

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